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Maconha não é droga

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Apontamentos para um debate eleitoral sobre a questão das drogas



Texto escrito por Júlio Delmanto que é jornalista, mestrando em História Social na USP. Membro do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e dos coletivos antiproibicionistas DAR (Desentorpecendo A Razão) e Marcha da Maconha.
[Escrito a partir de apresentação no debate sobre drogas realizado no Seminário de programa da candidatura presidencial do PSTU, realizado em 26 de junho de 2010.]

Faço parte de um coletivo que discute a questão das drogas por uma perspectiva anti-proibicionista. Organizado de forma horizontal, sem ligação com partidos, empresas e grupos religiosos, o DAR (Desentorpecendo A Razão) parte do conceito de razão entorpecida, da juíza aposentada Maria Lúcia Karam, que aponta que o proibicionismo das drogas somente se sustenta pelo entorpecimento da razão. “Somente uma razão entorpecida pode crer que a criminalização das condutas de produtores, distribuidores e consumidores de algumas dentre as inúmeras substâncias psicoativas, artificialmente selecionadas para serem objeto da proibição, sirva para deter uma busca de meios de alteração do psiquismo, que deita raízes na própria história da humanidade”, nos ensina Karam.
Não somos um coletivo formado exclusivamente por usuários de drogas e nem defendemos o uso de qualquer droga que seja. Defendemos mudanças na forma de se lidar com essas substâncias, e partimos do pressuposto de que as drogas não são um problema, e sim o abuso em seu uso pode sê-lo, e, principalmente, que é a proibição das drogas o grande problema. Podemos partir aqui do conceito de phármakon, que vem de Platão e é bem desenvolvido no texto de Jacques Derrida chamado A Farmácia de Platão. O phármakon, a droga, é o veneno-remédio, ou seja, seus efeitos dependem de seu uso, podendo ser benéficos ou não de acordo com a forma como essa substância é administrada.
Assim como tudo na sociedade, é sempre importante frisar que existe sim um uso responsável e razoável de todas as drogas (lícitas ou não), é fundamental desmistificarmos o senso comum que equipara usuário a dependente. No livro Hegemonia do cinismo – organizado por Maurídes de Melo Ribeiro e Sérgio Dario Seibel, por exemplo, há um dado de que de cada 16 usuários frequentes de heroína na Europa apenas 1 deu entrada em hospitais alguma vez. Ehan Nadelmann, diretor da ONG Drug Policy Alliance, em palestra em São Paulo em 2009, apresentou dados de um estudo feito sobre heroína que ao final identificou a constipação (prisão de ventre) como o maior problema de saúde identificado em usuários frequentes desta que é das drogas mais demonizadas. A pessoa pode ser dependente, mas em muitos casos pode conviver com essa condição se quiser, assim como faz com cigarro, televisão, sexo ou futebol.
O problema não é o uso, e sim o uso problemático ou irresponsável, não sendo cabível, portanto, formulações frequentes no senso comum como “combate às drogas”. Além de colocar diferentes substâncias de diferentes efeitos e tradições sob o rótulo genérico de “drogas”, essa concepção fetichiza tais drogas, as ilícitas, responsabilizando-as sobre todos os males da sociedade. Temos que ter em mente que quem é criminalizada não é a substância e sim a conduta de portá-la, e quem empreende a conduta são pessoas. Logo, a guerra contra as drogas é uma guerra contra pessoas.
Acho fundamental termos como ponto de partida a conceitualização do que é droga e também o entendimento de por que algumas delas são ilícitas e outras não, entender quê (melhor “quais”) interesses havia por trás no momento da proibição e quais interesses sustentam hoje essa proibição. A proibição tem raízes econômicas e morais e hoje é sustentada por interesses políticos e econômicos, tendo sido irradiada a partir dos interesses geopolíticos e morais dos Estados Unidos, passando para as legislações nacionais sem qualquer debate local, principalmente depois dos tratados internacionais de drogas, até então pouco aplicados, terem sido incorporados ao Tratado de Versalhes.
Se pretendemos formular um projeto de transformação radical da sociedade, não podemos deixar de encarar o papel preponderante que tem a “guerra às drogas” no âmbito internacional. Na América Latina, o fim do fantasma do comunismo coincide com o fim dos ciclos das ditaduras militares, e dentro dessa conjuntura o suposto combate às drogas cai como uma luva para os interesses geopolíticos estadunidenses. É no final dos anos 1970 e começo dos anos 1980 que os EUA definem as drogas como seu maior inimigo, interno e externo, e cunham o termo war on drugs. A utilização da terminologia de guerra não é coincidência aqui: o inimigo deve ser exterminado, sob quaisquer artifícios, num crescente ambiente de exceção, uma vez que se trata de um combate de duração indeterminada – assim como a Guerra Fria. Com o fim do comunismo, o combate às drogas é o grande elemento justificador de intervenção política e militar dos EUA sobre territórios de seu interesse. Depois do 11 de setembro, se justifica ainda mais a extensão do perímetro de defesa: uma guerra preventiva que nos insere num estado de exceção ainda maior. Não por coincidência, os EUA trabalham com o conceito de “narcoterrorismo” para justificar sua política militarizada de combate às drogas em sua fonte de produção, naquilo que Domenico Losurdo classifica como “uso terrorista do conceito de terrorismo”.
O primeiro orçamento anti-drogas, foi de US$ 100 milhões de dólares. Hoje é de $15,1 bilhões de dólares, 31 vezes maior que o de Nixon, mesmo ajustado pela taxa de inflação. A estimativa, da Associated Press, é de que nos últimos 40 anos somente os EUA tenham investido 1 trilhão de dólares na guerra às drogas. 92% do orçamento militar dos EUA para a América Latina está direcionado a planos de combate às drogas. Obviamente que isso não passa de um investimento: estima-se, por exemplo, que os EUA lucrem ao menos 200 milhões de dólares anuais com a venda de armas para países na América Latina. Além disso, estima-se que entre 80 e 90% dos lucros provenientes da venda de drogas termine em posse do sistema financeiro internacional. Mas pensando em termos de resultados, quais foram os resultados concretos destes gastos, supondo que eles tivessem como objetivo zelar pela saúde pública?
O argumento de que a proibição estaria zelando pela saúde pública é injustificável sob qualquer aspecto. Em primeiro lugar, consumo e produção seguem altos, ou seja, a proibição falha em sua primeira e mais explícita meta. Os EUA, país que mais gasta com repressão, são o principal consumidor mundial de drogas, além também de principal produtor de maconha. Segundo relatório publicado pela ONU em 2010, entre 150 e 250 milhões de pessoas consomem drogas ilícitas no mundo, ou seja, uma cifra que pode chegar a 5,7% da população adulta mundial. No Brasil, uma pesquisa do CEBRID de 2005 aponta que 22,8% dos adultos brasileiros já experimentaram alguma droga ilícita. No caso dos universitários, esse índice é de 49%, segundo outros dados publicados recentemente.
A proibição não só não impede que o uso de drogas aconteça (felizmente, pois, como apontou Luiz Eduardo Soares em entrevista ao DAR, isso representa uma vitória da sociedade diante do Estado), como também inviabiliza um tratamento adequado ao uso problemático e à dependência. A proibição impede que sejam priorizadas nas políticas públicas iniciativas em saúde pública, educação e em redução de danos. Além disso, a proibição causa um dano muito maior à saúde pública, é só compararmos o número de mortes em decorrência de abuso no uso de drogas e os mortos por conta da guerra às drogas. Só no RJ a polícia mata 2,4 pessoas por dia em média – sendo esta a cifra oficial! Entre 2003 e 2009, 11 mil pessoas foram assassinadas pela polícia em SP e RJ. Sem falar na violência do crime, e nos problemas causados pelo uso de substâncias da má qualidade e das quais não se pode prever os efeitos nem a dosagem.
Por isso, acredito que a crítica à proibição das drogas e a bandeira por alternativas em políticas de drogas são tarefas incontornáveis de qualquer projeto de transformação social digno deste nome. Na minha opinião, a abordagem desta questão deve ser feita sob dois aspectos.
Em primeiro lugar, proibindo algumas drogas o Estado está ingerindo absurdamente sobre a vida privada das pessoas, punindo um crime que não tem vítimas. Todo cidadão tem direito de decidir quê alimentos ingere e quê substâncias coloca em seu corpo. Neste sentido, a luta é por direitos civis, por liberdades individuais, e se assemelha muito à luta das mulheres por direito ao próprio corpo, a dos homossexuais por respeito à diversidade, etc. E assim como a defesa da legalização do aborto não é uma defesa pelo aborto indiscriminado e nem é uma demanda somente de mulheres grávidas, o debate por alternativas à proibição deve ser feito por toda a sociedade, não só aquela (grande) parcela que faz uso das substâncias ilícitas, ou que sofre o impacto da repressão.
Sob qual princípio o Estado pode legislar sobre o que é ou não bom para os cidadãos, na medida em que estas condutas não interfiram na integridade de terceiros? O Estado pode no máximo apontar os riscos que esse uso pode trazer, ou mesmo restringir o uso quando ele causa danos a terceiros, como no caso de dirigir alcoolizado ou fumar em lugares fechados. Uma deturpação que se faz constantemente é de que estamos defendendo o “liberou geral”, como o promotor Fábio Capez, por exemplo, nos disse em um debate. Pelo contrário, nós defendemos a legalização, portanto, defendemos a regulamentação. É a proibição que representa a ausência de regulamentação para o mercado, deixando que a violência e o crime organizado o façam.
Esse primeiro ponto, a questão da liberdade individual, é inclusive menosprezado por alguns militantes de esquerda, mas acho que ele é tão importante quanto o aspecto social da bandeira da legalização das drogas. No Mal-estar da civilização, Freud compara o ser humano a um planeta, pois assim como este gira em torno de sua órbita ao mesmo tempo em que faz a translação em torno do Sol, o homem busca sua satisfação individual ao mesmo tempo em que interage com a cultura e a sociedade. Acredito que estamos diante da mesma questão, a defesa de liberdade individual contra qualquer forma de repressão caminha junto e é indissociável da busca por outro modelo econômico, político e social. Como aponta Foucault em A microfísica do poder, na medida em que se radicalizam, as lutas específicas como a do movimento feminista, movimento negro ou homossexual, contestam o poder em si, e, portanto, as bases do sistema capitalista. São revolucionárias.
Mas como se não bastasse esse aspecto, a proibição das drogas gera uma série de consequências políticas e sociais inaceitáveis. Com a ausência de regulamentação, esse comércio passa a ser gerido pela violência, já que a demanda é alta e sempre existirá. O que acontece é por um lado o aumento dos preços, o que aumenta ainda mais o lucro dentro do tráfico, e por outro um mercado regulamentado pela violência, ainda contaminando mais a polícia, o judiciário e o parlamento com a corrupção. O tráfico de drogas é produto do proibicionismo, e é um dos atores menos interessados na legalização.
Além de fomentar a violência do crime, a proibição permite ao Estado ter mais uma ferramenta de repressão seletiva e de segregação racial e social. Como não poderia deixar de ser numa sociedade de classes, o processo de criminalização de uma conduta é seletivamente aplicado. A pena é por si só um instrumento de poder, uma vez que este é indispensável para sua aplicação, e numa sociedade desigual como a nossa, ricos e pobres comentem crimes, mas apenas pobres são punidos.
A proibição serve hoje como forma de conter setores indesejados da população, assim como serviu desde seu início a interesses racistas e xenófobos. Nos EUA a maconha foi propositalmente relacionada aos mexicanos quando os empregos que eles ocupavam passaram a ser desejados pelos estadunidenses depois da crise de 29; a cocaína e depois à heroína foram ligadas aos negros; o álcool aos imigrantes irlandeses e o ópio aos chineses, que imigraram pro país para construir as estradas de ferro. Hoje, o foco são os pobres e os negros – sendo que na Europa isso se estende também aos imigrantes. É a eles que o Estado tem interesse em criminalizar, e a guerra às drogas é um excelente argumento pra isso.
No livro Acionistas do nada, o delegado carioca Orlando Zaccone conta alguns casos interessantes pra exemplificar isso. Ele trabalhava numa delegacia próxima a alguns morros, como a Cidade de Deus. Ali todo dia alguém era preso como traficante. Foi transferido pra Jacarepaguá, uma região mais rica, e, lá, em um ano, só uma pessoa foi enquadrada no crime de tráfico. Então ele pergunta: nas regiões ricas não existe tráfico de drogas? Nas pobres ninguém é usuário, só traficante? Para responder isso, ele tem outro exemplo. Dois meninos, universitários, brancos, foram presos num carro importado com 270 gramas de maconha no porta-malas. O delegado os enquadrou como usuários, o que depois foi aceito pelo juiz, que os absolveu com o argumento de que eram estudantes, tinham emprego e moradia fixa, etc. Zaccone pergunta: e se eles fossem pretos, tivessem de chinelos num ônibus? Ia fazer diferença terem emprego, moradia fixa, etc.? Como o autor define bem, a criminalização é o oposto do privilégio.
A criminalização da pobreza se insere num contexto sócioeconômico muito mais amplo, e tem sido agravada nessas últimas décadas dos chamados “ajustes estruturais” também definidos como políticas neoliberais. Pierre Bordieu divide as políticas do Estado entre as da mão esquerda – educação, saúde, previdência – e as da mão direita, que é o aparato punitivo. Num contexto de crescente “enxugamento” dos investimentos estatais na mão esquerda, dentro da lógica de que é o livre mercado quem deve tudo regular, cada vez mais o Capital necessita de sua mão direita, do Estado penal. Aliam-se a isso outros processos, como o de reestruturação produtiva, de urbanização que também criminaliza a pobreza, etc. Com a mudança no modelo de produção, há cada vez mais desemprego, e segue-se o modelo de urbanização concentrando os pobres cada vez mais nas periferias das grandes cidades. Esses verdadeiros depósitos humanos não funcionam mais como reserva de mão de obra, como era no começo das favelas, quando ainda havia um crescimento industrial que podia absorver ao menos parte dessas pessoas. Hoje é cada vez maior o número dessas que são absolutamente indesejáveis, inúteis do ponto de vista do Capital. Supérfluas, como caracterizaria Hannah Arendt. O que fazer com elas? A resposta penal tem sido cada vez mais a dominante.
Nos EUA, 1 em cada 3 homens negros entre 18 e 35 anos está sob algum tipo de vigilância da justiça, ou preso ou sob condicional. São 6,5 milhões de presos lá, 1009 presos para cada cem mil adultos. 60% em prisões estaduais por crimes relacionados a drogas são negros; 81% dos acusados por violações a leis federais relativas a drogas são negros. No Brasil são cerca de 500 mil presos, sendo que crimes relacionados às drogas já são o primeiro índice de encarceramento, tendo superado recentemente os crimes contra o patrimônio. 40% destes presos ainda não foram sequer julgados. São cerca de 86 mil pessoas presas por crimes relacionados às drogas, segundo dados recentes do Ministério da Justiça – em 2005 eram 31 mil. No RJ, 66,5% dos presos são negros. No caso das mulheres, o tráfico já é o primeiro em número de presos, e nos EUA em matéria de novas prisões também é disparado o primeiro.
E aí não tem como questionar quem são esses encarcerados por comercializar drogas. Uma pesquisa publicada no ano passado, feita por Luciana Boiteux no Distrito Federal e no Rio de Janeiro, mostra que no DF 70% dos presos estavam com menos de 100g de maconha no momento de sua detenção; no RJ o número é de 50%. Em só 36% dos casos houve redução de pena por ser primário ou por não integrar organização criminosa. 20% são mulheres, número que cresce mundialmente. Com relação à cocaína, 75% no RJ tinham menos de 100g e 47,5% no DF. 84% não tinham arma de fogo o que desmistifica o perfil do traficante violento.
Portanto, é neste cenário que devemos nos inserir, são alternativas a este quadro que devemos propor. Nossa ênfase será na manutenção de um status quo que propõe a repressão e a militarização como alternativas para lidar com nossos problemas, ou buscaremos outras formas de equilibrar o respeito à liberdade e à soberania dos indivíduos com políticas públicas que amenizem problemas de saúde e sofrimentos relacionados ao uso problemático de drogas?
Creio que neste momento caminhamos para um consenso quanto ao fracasso do proibicionismo. Mesmo setores conservadores cada vez mais se apropriam deste debate. Por isso, é ainda mais fundamental que a esquerda se engaje nesta questão, pois estamos diante é da disputa de um projeto de alternativas. Diversos países do mundo têm alterado sua lei no sentido de políticas mais tolerantes, mesmo que não contestem diretamente os tratados internacionais proibicionistas. México, Argentina e República Tcheca descriminalizaram o consumo recentemente, caminho que já tinha sido trilhado por Portugal, Espanha e Itália. Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Holanda, Irlanda, Reino Unido e Suíça não descriminalizaram, mas despenalizaram posse e consumo. Mesmo nos EUA o debate ganha corpo, e 13 estados já permitem maconha medicinal. Em novembro deste ano a Califórnia realizará um plebiscito para decidir sobre a legalização completa da maconha.
No Brasil, desde a Rede Globo ao Fernando Henrique, este debate vem sendo travado, e precisamos apontar saídas que pautem para além da mera descriminalização do usuário, alternativa que além de hipócrita, mantém todo o segundo aspecto do problema do proibicionismo: a violência do tráfico e do Estado é mantida intacta, consequentemente a criminalização da pobreza também.
Por fim eu gostaria de levantar dois aspectos que certamente serão centrais nesta campanha, e dentro dos quais acredito ser necessário que uma proposta de esquerda se diferencie do senso comum e das propostas que Dilma, Serra e Marina apresentarão. O primeiro é a questão do “combate ao crack”, a demonização do crack, e dos pobres por consequência. É comum vermos pessoas dizendo que são “a favor da legalização das drogas menos do crack, que deve ser combatido”. Voltamos à fetichização do problema, a uma visão que trata a droga como um ente dotado de propriedades malignas. Esse enfoque desvia o verdadeiro centro da questão: retirando o crack daqueles moradores de rua e frequentadores da chamada cracolândia a vida deles estará resolvida, ou eles migrarão para a cola, a pinga ou o que quer que seja? Sem o crack eles passam a ter moradia, saúde, educação, trabalho, alimentação, lazer, etc.? A caracterização cada vez mais frequente da existência de uma “epidemia” de crack, por exemplo, é muito perigosa. Em primeiro lugar, exatamente por conta do proibicionismo, a ausência de pesquisas sérias e de atendimento gratuito e de qualidade na rede pública impede que se tenham dados concretos sobre o assunto. Além disso, não se pode classificar como epidemia uma conduta, um posicionamento cultural, como o uso de drogas, como se este fosse patológico por si só. Isso responde exatamente a uma demanda por tratamento médico forçado, por internações compulsórias, pois é isto que está implícito num clamor por resposta a essa “epidemia”. Então não podemos cair no enfoque proibicionista e criminalizador para lidar com esta questão, que demoniza ainda mais esta droga por ser a que tem um público consumidor mais vulnerável e passível de criminalização.
Em segundo lugar, acho que temos que discutir com seriedade a proposta demagógica da Marina Silva, de realizar plebiscitos sobre legalização das drogas e sobre aborto. Não que estes assuntos não tenham que ser decididos pelo conjunto da sociedade, pelo contrário, toda nossa militância anti-proibicionista é no sentido de ampliar o debate o máximo possível, mas é preciso que fique claro que estas duas questões não são passíveis de serem definidas simplesmente por decisão da maioria. Façamos então uma votação sobre o homossexualismo, e se os favoráveis perderem vamos encarcerar e matar a minoria homossexual? Um dos preceitos básicos de uma democracia é o respeito às minorias, à diversidade, à livre escolha – ao menos deveriam ser. Portanto devemos propor, sim, a ampliação do debate, mas jamais uma deliberação que se paute por uma imposição das concepções da maioria a uma minoria, seja ela qual for.
Por estarmos ainda longe de um debate de profundidade quanto a alternativas ao proibicionismo, creio que a tarefa imediata não seja propor necessariamente um modelo, e sim pregar a abertura do debate de forma ampla e sem preconceitos. O proibicionismo obviamente falhou, e diante disto é preciso buscar alternativas viáveis e controladas socialmente. Controle e regulamentação de produção, venda, consumo e publicidade, alguma espécie de anistia a estes milhares de presos de hoje, estímulo a cooperativas, campanhas de educação e redução de danos, todos estes são aspectos a serem melhor debatidos e amadurecidos na busca de um programa político alternativo ao proibicionismo estadunidense.
A questão do tráfico também é debatida de forma enviesada, sendo que obviamente ele seguirá existindo (existe tráfico de bebidas e cigarro hoje, e estes são legais), mas sem dúvida perderá grande parte de seu poder econômico. Além disso, quanto menos restritiva for a nova legislação, menos espaço para o tráfico haveria, com o contrário sendo igualmente provável.
No entanto, o principal em minha opinião é exatamente partir dessa premissa e se distanciar da fetichização ideológica das drogas como entes metafísicos dotados de capacidade de destruir as balizas da sociedade e da família, e tratá-las como o que de fato são – substâncias cujos efeitos dependem de seu uso, que deve dizer respeito unicamente à esfera pessoal de cada indivíduo. Como disse Foucault em entrevista, “o puritanismo, que coloca o problema das drogas – um puritanismo que implica o que se deve estar contra ou a favor – é uma atitude errônea. As drogas já fazem parte de nossa cultura. Da mesma forma que há boa música e má música, há boas e más drogas. E então, da mesma forma que não podemos dizer somos ‘contra’ a música, não podemos dizer que somos ‘contra’ as drogas”. Creio que o melhor discurso a se fazer em uma campanha eleitoral deve seguir esta premissa, naturalizando tais substâncias como elementos culturais e problematizando os aspectos políticos, geopolíticos e sociais de sua proibição, desvencilhando-se sempre de moralismos e puritanismos entorpecentes.

fonte:http://www.renatocinco.com.br

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quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Politiconha

Sou poeta maconheiro do sudeste do Brasil
Fumo no cerrado do noroeste mineiro
Mas viajo pelas rodovias da minha mente
Sou do Urucuia dos vales vertiginosos
Sou dos povos do planalto central
Sou Arinos, Buritis e Cristalina quente
Sou o cimento do crescimento vertical
Sou Unaí tão calorífica à sombra dos Adjutos
Muitos anos se definharam no progresso seu
Seu povo chora a carência de cidadania
O povo seu cúmplice chora sua tirania
Corvos covardes comem na câmara imunda
Está quente a corrupção por aqui
Unaí não é a mesma de antes, piorou
Hoje coronéis matam ao bel prazer
Ainda compram e vendem votos aos ingênuos
Desnecessária politicalha de santos falsos
Não temos cultura a não ser da soja
Já não bastasse o cerrado em extinção
Povoamos nossa serra sem compaixão
Vivemos em guerra contra a miséria
Que traz a fome e atrasa nossa vida
Não usamos as armas certas para lutar
Não nos dão as armas certas para lutar
Não querem que lutemos contra eles
Eles pensam que o poder é antidemocrático
Temo que possam estar com a razão.
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